“Entre amigos tudo é
comum”, já diziam os gregos. Eles foram os primeiros a
estabelecerem a separação público e privado. A esfera pública diz
respeito ao que deve ser compartilhado, colocado em comum; já o
âmbito do privado se refere ao que pertence a cada indivíduo, à
sua singularidade. A amizade se tece na interface entre o público e
o privado. Através dela publicizamos a nossa individualidade,
compartilhamos nossos desejos e sonhos. Mas isto não se dá
aleatoriamente, e sim em comunidade. Esta é a chave da amizade: os
amigos formam uma comunidade de compartilhamento, sentem-se em comum.
Não se trata, portanto, de uma relação restrita a dois indivíduos,
mas a um fórum mais amplo que inclui os que constituem “os
amigos”. Isto não quer dizer que tudo entre eles é “comum”,
nem que a relação de igualdade suprima as diferenças A amizade
supõe um certo igualitarismo, fundado no que é comum, e
divergências.
A amizade pressupõe
partilha, igualdade. Não pode haver amizade em relações de poder,
em que um se sobrepõe ao outro e um dos polos se submete. “Quando
se é amigo, mesmo se existir discordância ou rivalidade, é-se
igual. Para um grego, só é possível ter amizade por alguém que é,
de alguma forma, um semelhante: um grego para com outro grego, um
cidadão para com outro cidadão” (p.28). [1] A política do
“inimigo meu inimigo teu” exige submissão ao indivíduo que se
considera o líder ou se imagina a personificação do grupo. A
homogeneidade do grupo não pode descartar a diferença. “Não há
philía sem rivalidade, éris” (Id.). A amizade pressupõe
conflitos e, portanto, uma relação democrática. Sem discussão não
se tem amizade, mas sim submissão.
A amizade inclui os
amigos, mas também os colegas. A diferença talvez esteja no grau de
intensidade: se considero alguém meu amigo, sinto-me mais próximo
dele e mais predisposto a compartilhar; já o colega é alguém mais
distante, porém, como o amigo, compõe o círculo, a comunidade,
isto é, constitui uma referência.
A amizade pressupõe
igualdade e partilha, mas não em qualquer circunstância e com
qualquer um. Na verdade, escolhemos com quem compartilhar, quem é o
nosso igual. A amizade é eletiva e seletiva. “As pessoas que
escolhemos, aqueles com quem temos afinidades são aquelas que nos
inspiram uma confiança total. Existe nisso algo da ordem da escolha,
da avaliação; o “nós” não existe necessariamente apenas
porque trabalhamos no mesmo setor ou porque temos as mesmas ideias”
(p.30). É preciso sentir-se em comunidade. “E não existe
comunidade sem philía, sem o sentimento de que, entre o outro e nós,
alguma coisa circula, a qual os gregos podiam representar sob a forma
de um daímõn alado, que voa de um para o outro” (p.31).
“Existimos com e pelos
outros, que, ao mesmo tempo, são e não são como nós” (p.35). A
amizade não é um percurso harmonioso, fácil de percorrer. Implica
conflitos, transformações do eu e do outro. “É assim que se tece
a amizade, por meio de percursos mais ou menos difíceis, de
fracassos, de contrassensos, de retomadas… Não existe imediato no
homem. Tudo acontece por meio de construções simbólicas” (Id.).
A amizade pressupõe a
luta por sua construção; ela não está dada a priori, tem que ser
tecida. Se ela pressupõe fidelidade, como o amor, pode ocorrer a
necessidade do rompimento, que se corte o tecido para ser fiel a si
mesmo. Há indivíduos que precisam romper com os outros e com eles
mesmos. “Só conseguem ser eles mesmos cortando não só o tecido
que os une aos outros, como também aquele que os une a si mesmos”
(p.37). Um exemplo dessa dupla ruptura é as cisões políticas e/ou
religiosas. Muitos não conseguem consolidar o rompimento sem que se
transforme no oposto do que eram.
* Anotações de leitura
da obra Entre Mito e Política, de Jean-Pierre VERNANT (São Paulo:
Edusp, 2002).
[1] Todas as citações
são da obra supracitada.
Fonte:
http://antoniozai.wordpress.com
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