Domingo,
manhã ensolarada. Na rua, uma senhora idosa, acompanhada de uma
jovem, conversa com um senhor idoso, que empurra o seu carrinho de
lixo reciclável ladeira acima. De repente, ela começa a orar em voz
alta! Mãos postas sobre a cabeça do homem, que respeitosamente tira
o boné que o protegia do sol, a senhora parece possuída e clama aos
céus por seu irmão em Cristo. Respeitosamente, não fico a observar
a cena, mas não sou surdo! As palavras dela expressam fervor
religioso. Parece porta-voz dos desígnios celestes. Concluído o
ato, ela despede-se e segue seu caminho. O senhor agradece
calorosamente, repõe o boné sobre os cabelos brancos. Em seu
caminhar, pára diante de mim e começa a falar. Elogia a atitude da
mulher, profere palavras de respeito e crença em Deus e mostra-me o
braço com o osso deslocado acima: o aspecto é estarrecedor. Explica
que foi um acidente. Visivelmente encurvado sob o peso dos anos e do
trabalho pela sobrevivência, volta a mostrar o braço e diz que não
tem jeito, nem Deus – com todo respeito! Ele despede-se e vai
adiante, empurrando seu carinho, o seu ganha-pão. Deixa-me a pensar
sobre a fé e o ceticismo. Quanto à senhora, seguiu feliz, convicta
de que fez uma boa ação e marcou mais alguns pontos na
contabilidade da salvação eterna. A fé é mesmo algo admirável!
Cena
2
Caminhando
observo o escrito na camiseta da moça: “Salve os lindos… os
feios que se danem!” As palavras dirigem-se ao salva-vidas na
praia. Penso em brincar com a situação, quem sabe até fazer uma
análise sociológica e mostrar que a frase corresponde ao padrão de
estética da sociedade contemporânea. Contenho-me e apresso o passo!
Ao passar por ela, vejo que nos conhecemos. Não resisto e faço um
comentário cômico sobre os dizeres em sua camisa e as minhas
chances de ser salvo do afogamento. Ainda bem que tenho medo do mar!
Afirmo o direito, talvez in propria causa, dos feios viverem! Rimos,
nos despedimos e cada um segue seu rumo.
Cena
3
No
salão de beleza, o homem, ajoelhado e debruçado, acaricia barriga
de mulher grávida. Chama a atenção pelo singelo e belo! Fico a
pensar na criança que nascerá. Qual país herdará? O que fazemos
pelas gerações que virão?
Cena
4
Terreno
baldio, sofá de pernas para cima serve de “lar” para um
cachorro. Uma alma bondosa deixa comida e água. Ao passar, ele rosna
e defende o território. Mesmo os animais irracionais precisam de
atenção e “teto”!
Cena
5
A
mulher caminha lendo livro “Noiva…”! Caminha e lê,
simultaneamente! Admirável! Discretamente, tento decifrar o título
na íntegra, mas não consigo. Vejo, porém, que é um pockets.
Parece literatura cor-de-rosa. Lembro das minhas leituras de
adolescente. E sigo admirado com os gostos literários…
Cena
6
A
propaganda no outdoor anuncia o automóvel PT Cruiser Classic pela
bagatela de 69.900,00 reais. A imagem é tentadora, mas não para o
homem maltrapilho que puxa um carrinho de duas rodas, “último
modelo”, transbordando de lixo reciclável. Fico a pensar sobre o
absurdo do valor de um carro e, mais ainda, sobre as contradições
sociais, tão bem sintetizadas naquele momento!
Cena
7
No
serviço ao cliente, a moça que atende é negra; a única presente
naquele recinto. Penso sobre a universidade e o sistema de cotas.
Será que ela tem graduação ou estuda em instituição de ensino
superior? Qual é o seu salário? O que pensa sobre o sistema de
cotas para negros nas universidades públicas?
Cena
8
Um
jovem anda pelas ruas do centro de São Paulo. Uma criança o aborda
e pede dinheiro. Ele olha em volta e observa, num canto, uma senhora
no chão com outras crianças, inclusive de colo. Ainda não havia
lido Dostoievski e não discutiria se o ambiente influencia ou não o
destino das pessoas (vide a personagem Sonia, em “Crime e
Castigo”), mas imagina o futuro daquelas crianças. Ele chora
lágrimas de revolta contra um mundo que produz tais coisas. Sua
moral cristã o leva a indignar-se, mas ele ainda não compreende as
causas sociais da miséria humana. Seu julgamento é moral, embora
sofra.
(Do
Blog Ozaí)
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