Luta também é contra a invisibilidade da maternidade atípica / Divulgação |
O choro foi como um presente,
como uma vitória. Quando Maria Flor, de 6 anos, reclamou de ir embora da
escola, a mãe, Andrea Medrado, de 36, ficou feliz. Ela faz de cada dia uma
batalha para garantir à menina o direito de estar na escola.
A garota foi diagnosticada com a
síndrome rara Pitt Hopkins (doença neurogenética que, entre os problemas, gera
atraso no desenvolvimento e ausência de fala) e também autismo.
A mãe já chegou a ouvir de uma
gestora escolar em Brasília que a escola não tinha vaga “para este tipo de
criança”.
O choro bom da menina, de querer
ficar na escola, prova que a luta da mãe vale muito a pena.
Andrea Medrado defende, aliás,
que a inclusão da filha e de todas as crianças com alguma deficiência precisa
ser de verdade. Uma inclusão para integrar, com plena participação em todos os
ambientes.
“Quando a gente chama a pessoa
para uma festa, precisamos não apenas deixá-la no lugar. É preciso chamá-la
para dançar com a gente. Eu acredito que inclusão é isso”.
Essa dança de mãe e filha é feita
de muitos passos. Envolveu e envolve insistência, medidas judiciais e pedido de
diálogo com a gestão escolar.
Uma luta que não é simples,
segundo a pesquisadora em educação inclusiva Mariana Rosa, de Minas Gerais. “É
uma luta porque se trata de uma mudança de paradigma bastante importante na
educação. A gente está tentando consolidar o direito das pessoas com
deficiência acessarem a escola, o currículo, e permanecerem estudando”.
A pesquisadora critica o
preconceito difundido de que as pessoas com deficiência seriam estudantes que
não aprendem, que precisam de um cuidado médico e não pedagógico. Ela lamenta
que, embora a legislação seja avançada, houve um desmonte nos últimos anos com
diminuição de repasse de recursos para infraestrutura e formação de
professores. “O decreto nº 10.502/2020 [revogado pelo presidente Lula] tinha um
discurso segregacionista [ao prever escolas apenas para pessoas com
deficiência]. Mas a gente está até hoje lidando com audiências públicas no
Congresso que defendem que o melhor lugar para essas crianças seriam
instituições separadas”.
Luta
No caso da mãe Andrea, o
inconformismo com as dificuldades para o ensino se traduziu em luta. “Desde que
a gente investigou o atraso no desenvolvimento da Maria Flor e com o
diagnóstico, eu comecei a me envolver em ações de movimentos sociais em prol
das pessoas com deficiência e das doenças raras”. Andrea passou a organizar
encontros com profissionais para poder compartilhar informação de qualidade
para outras famílias em situações semelhantes.
Inclusive porque o envolvimento
passa por abdicações e dificuldades. “A maternidade atípica é invisibilizada. A
gente também trabalha com o cuidado e muitas vezes largamos tudo para levarmos
os filhos para terapias. A mulher acaba ficando até sem aporte financeiro. A
maioria dos pais abandona a família quando tem um filho com deficiência”.
De acordo com o instituto Baresi,
de doenças raras, um estudo feito na década passada, mostrou que no Brasil,
cerca de 78% dos pais abandonaram as mães de crianças com deficiências e
doenças raras, antes que os filhos completassem 5 anos.
Para Andréa, a maternidade
atípica não é vista em comerciais nem em campanhas. São poucos os convites para
participar de debates. “As pessoas batem nas nossas costas nos chamando de
guerreiras, de especiais. A gente quer ser vista como uma mulher, como humana,
que também cansa, que se encontra em um lugar de exaustão e está em um lugar
social de invisibilidade”. Para ela, é preciso pensar em políticas públicas efetivas.
“Hoje a minha luta e de alguns
movimentos sociais que eu faço parte é que as pessoas com deficiência possam
ocupar o lugar que elas quiserem”. Andrea testemunha que a filha passou por
alguns centros de ensino especiais no Distrito Federal e soube que professoras
queriam medicar a menina porque Maria Flor utiliza o choro para se comunicar.
“Essa foi uma das primeiras
barreiras que a gente enfrentou. Queriam calar minha filha. Ela precisa fazer
terapia multidisciplinar e de forma contínua e a gente precisa também do
profissional de apoio que também consta na Lei Brasileira de Inclusão, de 2015
e na lei Berenice Piana, de 2012, que protege os direitos das pessoas com
espectro autista.”
Chamar para a “dança” da inclusão
é garantir, por exemplo, que as turmas sejam reduzidas. “E ela precisa estar em
uma turma menor. Essa foi outra luta. Inclusive a gente ainda está com um
processo judicial que está correndo para garantir o atendimento de profissionais
especializados”. Para se comunicar, Maria Flor conta com um tablet com um
aplicativo em que ela expõe emoções. No ano passado, chegou a reclamar da
escola. Hoje, mudou. “A escola precisa estar aberta a ouvir as famílias. Esse,
para mim, é o ponto principal. Pelo aplicativo, ela demonstra ter vontade de ir
para escola e que foi bom brincar com os amiguinhos”. Essa dança não pode
parar.
Os passos de “dança”
A professora de química Joanna de
Paolli, de 37, viu-se como uma aluna em pleno aprendizado depois que o filho
foi diagnosticado com autismo. “O meu filho viveu momentos de segregação, de
integração e hoje caminha em processos de inclusão”. Ao compreender o que
estava acontecendo, a mãe resolveu se especializar nos temas de inclusão.
Transformou-se em pesquisadora desse assunto e passou a entender o que
acontecia.
Ela relata que o menino ficou
separado do convívio com outras crianças porque ainda existe uma concepção da
sociedade que as pessoas com deficiência precisam ser preparadas para a sala
regular. “Eles tentam fazer esse exercício de preparar de forma separada essas
crianças e meu filho infelizmente viveu isso”. Mas o garoto, atualmente com 15
anos, só aprendeu de verdade como se comportar em uma sala de aula regular
quando ele teve a oportunidade de estar nesse lugar.
“A gente não aprende a nadar num
tanque de areia. Também não se entra numa piscina já sabendo nadar. A gente vai
aprendendo. Todos nós podemos ter mais potencialidades em alguns conhecimentos,
algumas áreas e mais dificuldades em outras. Isso não é diferente para as
pessoas com deficiência”, afirma a professora.
Joanna defende que a escola seja
um espaço lúdico e não segregacionista. “Eu tenho na minha história e na
história do meu filho que a escola está sendo muito importante na vida dele. A
escola deve ser interativa, contextualizada, lúdica e que desenvolva
consciência. Uma boa educação precisa atender a todos”.
O caminho
Para a pesquisadora Mariana Rosa,
a exclusão só terá fim com investimento efetivo na educação inclusiva no
Brasil. “Acho que o caminho passa por investimento consistente e permanente na
educação, na escola pública, para todas as pessoas”. Isso inclui, no entender
dela, o prosseguimento da Política Nacional de Educação Inclusiva com salas de
recursos multifuncionais, atendimento educacional especializado e investimento
na formação e no salário dos professores.
Em nota à reportagem da Agência
Brasil, a assessoria de comunicação do Ministério da Educação (MEC) informou
que está em fase de conclusão uma portaria que instituirá a Comissão Nacional
de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. O órgão garante que
vai aperfeiçoar e expandir programas de formação continuada de profissionais da
educação, incluindo professores e de atendimento educacional especializado para
atender demanda da sociedade.
“Será retomado também o programa
de implementação de salas de recursos multifuncionais nas escolas comuns, a
expansão e aperfeiçoamento do Projeto Livro Acessível (PNLD), a melhoria da
acessibilidade na educação básica e na educação superior”, informou o MEC.
Mundo das artes
É ao som do batuque que a carioca
Patrícia Almeida, de 57 anos, funcionária pública aposentada, também vê a filha
Amanda, hoje com 18 anos, se desenvolver. A moça, diagnosticada com síndrome de
down, cursa a segunda etapa do ensino de jovens e adultos, tem estímulo em
terapia, natação e aula de batuque. A agenda, garante a mãe, faz com que a moça
tenha apreço especial pela arte.
Mas nem sempre foi assim. Por
conta da profissão dos pais, na área de diplomacia, a família passou 10 anos
fora do Brasil. Um desses países foi a Suíça. Foi uma decepção para a família.
A mãe exemplifica que escolas
especiais eram administradas por psiquiatras ao invés de educadores. “Não
faltava dinheiro ou equipamento. Mas lá, não existe educação inclusiva. Ela foi
para uma escola especial que era tão ruim que a gente teve que tirá-la, e ter
um aprendizado em casa com psicopedagoga, em homeschooling”.
Mas isso foi um problema porque a
menina só convivia com adultos. Quando voltaram ao Brasil, ficaram felizes de
ter acesso à escola pública. Viram que havia professores especializados em
educação inclusiva. “Não é melhor apenas para crianças com deficiência, mas
para todas as crianças”. Por isso, Patrícia entende que é necessário que os
pais procurem a escola para dialogar.
Com a chegada da filha à
adolescência e, finalmente, com o convívio com outras pessoas da mesma idade, a
mãe se inspirou para produzir um material de linguagem simples: Eu me protejo,
sobre os cuidados com as partes íntimas. “Eu resolvi fazer esse material
justamente para ela poder se fortalecer com essas informações. E poder reagir
caso alguma coisa de mal acontecesse”
“A Amanda fala pouco, mas é uma
pessoa muito alegre. Eu a vejo seguindo no mundo das artes”. Patrícia entende
que é necessário acreditar no potencial de todos. A inspiração na filha vai
fazer com que lance, neste ano, o novo livro Simples assim. Simples como são as
mães que veem os passos dos seus filhos, nadando, batucando, e dançando em
todos os ritmos.
(O Otimista)
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